Número de mortes e de indivíduos incapacitados oscilou em meio a mudanças de legislação e avanço de novos vícios
Um estudo publicado em fevereiro deste ano na revista Lancet Psychiatry joga nova luz sobre os danos causados pelo abuso de substâncias ilícitas na América do Sul. A pesquisa analisou dados relativos à taxa de mortalidade e ao número de anos vividos com incapacidade atribuíveis ao uso de anfetaminas, cannabis, cocaína e opióides de 1990 a 2019, realizando uma correlação com a legislação e as políticas públicas implementadas na região durante o período.
A iniciativa contou com informações do Global Burden of Disease Study, um estudo sistemático realizado pelo Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME) da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, em parceria com diversas instituições científicas em todo o mundo.
“No caso das drogas ilícitas, a América do Sul se mostra uma região muito estratégica”, diz o pesquisador Dr. João Maurício Castaldelli-Maia, orientador da pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e primeiro autor do artigo na Lancet Psychiatry. “Somos o maior produtor de cocaína do mundo e um enorme produtor de cannabis, enquanto em relação aos opióides, possuímos baixo uso quando comparados com a média global."
Entre as tendências observadas nas últimas três décadas, é possível observar uma estabilização no nível dos danos provocados pela maconha no Uruguai, apesar da legalização da cannabis no país. No Brasil, destaca-se o crescimento significativo do ônus à população pelo uso da cocaína, seguido por uma estabilização e decréscimo na curva. Em relação aos opióides, a média global ficou muito acima dos números da América do Sul, embora tenha havido um acréscimo em determinados países, como Brasil e Equador.
O estudo utilizou como principal métrica os DALYs (sigla em inglês), ou Anos de Vida Perdidos Ajustados por Incapacidade, que consistem na soma dos anos perdidos devido a morte prematura e os anos vividos com algum tipo de sequela ou incapacidade, ambos levando em conta a expectativa de vida média da população.
“Esse é um tema que carrega muita ideologia e procuramos tomar o máximo de cuidado para realizar uma discussão balanceada dos dados”, afirma o Dr. João Castaldelli-Maia, que assina o artigo junto a outros 18 autores de instituições dos EUA, Índia, Chile, Colômbia e Argentina.
Ainda segundo o pesquisador, antes de qualquer conclusão, é preciso uma análise mais atenta dos dados. As taxas de mortalidade e de sequelas, por exemplo, variam significativamente entre os diferentes tipos de drogas. Enquanto a taxa de DALYs associada à cannabis por cada 100.000 indivíduos fica abaixo de 20, na cocaína esse teto sobe para 60 e, no caso dos opióides, para 180 casos. Em relação às anfetaminas, o número de anos vividos com incapacidade devido ao uso da droga é mais que o dobro dos anos perdidos por morte prematura na média global em 2019.
E são vários os fatores específicos que contribuem para explicar esses índices. A faixa etária dos usuários de anfetaminas é bastante jovem, e há uma ampla utilização recreativa dessa droga. Por outro lado, aqueles que sofrem com dores crônicas e condições pré-existentes são mais suscetíveis à dependência de opióides, que muitas vezes são prescritos para tratar essas condições. Além disso, o padrão de uso de substâncias, a pobreza, a desigualdade de renda e o fato de que a América do Sul é um grande fornecedor de cocaína tornam esse lugar único para pesquisas sobre o tema.
Continente em observação
Após uma década de implementação da lei de regulamentação da maconha, que controla a venda da substância pelo Estado, o Uruguai apresentou uma alta prevalência de usuários e de transtornos associados à droga, porém, dentro de uma tendência estável. “Entre os diferentes modelos de legalização no mundo, o do Uruguai desperta interesse", diz o Dr. João Castaldelli-Maia. “O que está acontecendo nos EUA e Canadá, por exemplo, é totalmente diferente, pois lá a cannabis é tratada muito mais como um produto e já é possível se observar um aumento do número de dependentes (conforme artigo de Imtiaz e colaboradores publicado no mês passado).”
Enquanto isso, o Brasil desponta negativamente em relação ao uso de opióides, sendo o país com maior aumento no índice de DALYs do estudo. “Apesar de uma carga baixa em relação aos transtornos comparada com as outras regiões do mundo, vemos um crescimento perigoso e começa a ser algo que chama a atenção”, diz o Dr. Castaldelli-Maia. Como o uso de opióides injetáveis (heroína por exemplo) é bem incomum no país, existe uma necessidade de maior esclarecimento dos danos compartilhados com as doenças que geram dores crônicas e demandam o uso da droga em território nacional.
Para o pesquisador, a área de saúde mental ainda carece de investimentos abrangentes, incluindo o tratamento e a prevenção de dependências. Nesse contexto, o foco recai sobre a cocaína como a substância mais relevante para investigação na América do Sul, dado os altos índices de transtornos associados à droga em quase todos os países da região e os resultados promissores obtidos por programas de redução de danos.
Durante o período analisado, o Brasil apresentou um aumento significativo nos índices de DALY, mas passou a registrar queda a partir de 2017, enquanto Argentina e Uruguai vinham de leve crescimento até 2010 e também conseguiram reverter essa tendência. “São países que implementaram programas muito importantes, investindo bastante”, diz o Dr. Castaldelli-Maia. “Os números refletem isso, a cocaína é a substância em que mais se investiu entre as drogas ilícitas em termos de programas preventivos.”
Essa prevenção inclui cenários altamente complexos, que vão desde a educação da população sobre os malefícios da substância, até o combate ao narcotráfico e às zonas produtoras, passando por questões legais e judiciais em torno da venda. “Não se trata apenas do investimento em saúde, mas também de segurança e de oferta de tratamento e suporte social”, diz o pesquisador. “São projetos custosos, mas que, de certa maneira, conseguiram colher resultado.”
Confira o artigo completo na Lancet Psychiatry: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0376871623000030