História das epidemias e das endemias #05 - Sífilis, medicina e julgamento moral

Museu Virtual da FMUSP em tempos de pandemia




(Por Ricardo dos Santos Batista)

Por muito tempo a sífilis foi considerada uma “praga sexual” pois, embora a sua causa não fosse conhecida, já se observavam as manifestações que causava nos órgãos genitais. Somente em 1530, o médico, astrólogo e literato Girolamo Fracastoro atribuiu-lhe este nome, ao criar o poema Siphilis sive morbus gallicus. Esse poema conta a história do pastor Sifilo, que desafiou o Deus Sol em favor do Rei Alcítoo e foi punido como primeira vítima do mal que se disseminaria por todo o mundo. Fracastoro, foi o primeiro a apontar a característica contagiosa da doença, que permaneceu como uma enfermidade de pouco interesse social até meados do século XIX. Na passagem para o século XX, a medicina, que estabelecia bases mais sólidas, especialmente pelo desenvolvimento da bacteriologia, transformou a sífilis em um inimigo que precisava ser localizado e combatido dentro do organismo humano devido ao ser caráter hereditário, e não mais ser considerada um castigo divino pelos excessos sexuais.

Por suas manifestações cutâneas, a sífilis tornou-se objeto dos estudos em “Dermatologia e Sifilografia”. Como demonstrou o pesquisador Sérgio Carrara, focos de produção científica nesse campo começaram a se diversificar em centros de pesquisa do país. Na cidade de São Paulo, por exemplo, os médicos Ulisses Paranhos e Antônio Carini, do Instituto Pasteur, e Adolfo Lindemberg, do Instituto Bacteriológico desenvolveram pesquisas de importância para a ampliação da área. E, em 1925, na maior campanha contra a sífilis que ocorreu no país até meados da década de 1940, surgiram os Anais Brasileiros de Dermatologia, dirigidos cientificamente pelo doutor Lindemberg. 

Com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1920, o médico Eduardo Rabelo implantou uma política de combate à sífilis que resultou de um longo debate entre médicos brasileiros e que dizia respeito ao papel social da prostituição, considerada pela medicina como a principal propagadora da doença. Enquanto um grupo defendia a regulamentação, com o registro e acompanhamento das meretrizes, outro grupo partia de uma perspectiva abolicionista para a qual os prostíbulos deveriam ser fechados, por seu caráter imoral. Havia dissidências dentro de cada um desses polos, o que contribuiu para que Rebelo adotasse uma perspectiva abolicionista que, de certa forma, incorporava elementos regulamentaristas: ele deu ênfase à campanha de educação e propaganda sanitárias, ao tratamento profilático e instituiu um serviço de enfermeiras visitadoras, que deveria convencer as pessoas mais “aptas a transmitir a sífilis facilmente” a se matricularem nos dispensários para o tratamento. 

Embora a medicina investisse no controle da sífilis por meios considerados científicos, julgamentos relativos ao gênero e à sexualidade estavam presentes tanto na política pública quanto no atendimento às mulheres nos dispensários médicos. No ano de 1925, o doutor Gil Guimarães relatou as dificuldades de tratar a sífilis nas mulheres da cidade baiana de Ilhéus, pela escassez de enfermeiras, visto que disponibilizar o corpo feminino para o exame de enfermeiros poderia macular a imagem daquelas senhoras. As prostitutas também tinham receio de contrair a sífilis. Após ser avaliada pelo doutor Pirajá da Silva, no dispensário Ramiro Monteiro, em Salvador, a meretriz nomeada como E. V. ameaçava se suicidar por achar que uma pessoa em seu estado não teria mais como conseguir meios de sobrevivência. A penicilina, responsável pela cura da doença, só seria descoberta em 1928.

Hoje vivenciamos a incidência em escala global da Covid-19, que em muitos aspectos se difere da sífilis, mas que mantém pontos de similitude como a inexistência de um tratamento eficaz e um julgamento social que se estende não só aos contaminados, mas até mesmo aos profissionais de saúde que atuam no combate à doença. Que as reflexões sobre os preconceitos sociais ocorridos em outros momentos da história, que implicaram em dificuldades ao acesso aos bens de saúde e no sofrimento de pessoas infectadas, nos ajudem a compreender melhor e a enfrentar os desafios que se apresentam no presente.

Ricardo dos Santos Batista é doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia, professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado da Bahia – Alagoinhas, e, atualmente, desenvolve pesquisa de Pós-doutorado no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, sob a supervisão do professor André Mota.